Cidades
colapsadas
Roberto
Ghione
O debate acerca das cidades brasileiras tem ultrapassado,
nos últimos tempos, o contexto profissional, acadêmico e disciplinar da
arquitetura e urbanismo para alcançar toda a sociedade. Tal circunstância é
produto do colapso que hoje sofrem as grandes e médias cidades, que imobilizam
diariamente milhares de pessoas e complicam o natural desenvolvimento das
atividades cotidianas. Este fenômeno coloca em crise a legitimidade das
decisões políticas e urbanísticas assumidas nas últimas décadas e questiona o
próprio conceito de democracia, que decide políticas urbanas em benefício de
setores e em detrimento do interesse geral.
A sociedade brasileira encaminha-se para ser urbana.
Hoje, mais de 80% da população mora em cidades. Esta realidade determina que o
desenvolvimento destas condicione o do próprio país, enquanto o nível de
urbanidade e civilidade vai marcar o grau de civilização que alcançará o Brasil
como nação.
O tempo presente é o das cidades, e da inteligência e
sensibilidade com que se afrontem suas políticas e gestões dependerá o destino
do país. O colapso das cidades e a mobilização social que ele provoca
constituem uma oportunidade para refletir e propor alternativas de
desenvolvimento urbano com justiça, integração social e preservação do
patrimônio cultural e ambiental, com possibilidades efetivas de saldar a dívida
interna que tem levado ao caos atual.
O colapso das cidades começou, de fato, muitas décadas
atrás, com os processos de transferência de população rural para o meio urbano.
A persistente desigualdade social e sua manifestação em favelas que comprometem
a idéia de cidadania de grande parte da população desafiam os atuais gestores.
O colapso, sofrido durante décadas por um setor da sociedade (majoritário,
porém sem capacidade de organização e representação até uma década atrás), evidencia-se
nos processos de exclusão, cujas conseqüências manifestam-se na violência que
assola as cidades. As classes médias e altas resolveram morar em edifícios
defensivos e condomínios fechados como meios de proteção. Com isso, agravaram a
exclusão, abandonaram a apropriação dos espaços públicos e estimularam o uso do
automóvel particular como meio de transporte. Este processo, que adiou durante
décadas a instrumentação de políticas urbanas integradoras, se reflete no atual
colapso total, que tem travado e imobilizado a todos: ricos e pobres.
Violência urbana e imobilidade são os fatores
determinantes do colapso, que resumem inúmeras calamidades sofridas pelas
cidades, desde a falta de saneamento até a vergonhosa exclusão que divide os
brasileiros entre cidadãos de primeira e de última. A sociedade deu sinais de
reação com os movimentos de junho, que dentre a difusa variedade de
reivindicações, as referidas à cidade possuem um lugar de destaque. Desde as
causas relacionadas ao transporte público gratuito até as exigências de
equipamentos públicos “padrão FIFA”, os temas urbanos integram uma parte
significativa dos reclames pela dignidade cidadã.
Crise é sinônimo de oportunidade. Cidades colapsadas
significam a chance de reivindicar o papel social da arquitetura e do
urbanismo. A sociedade tem considerado o arquiteto, nos últimos tempos, como
profissional ligado às classes privilegiadas, visão anacrônica, porém
persistente, alimentada pela profusão de colegas dedicados à decoração e
interiores, assim como a persistente propaganda em colunas sociais, lojas e
revistas especializadas. A esta situação acrescenta-se, como resultado dos
movimentos sociais em prol de cidades mais justas e integradas, a visão do
arquiteto depredador, obediente das determinações do mercado imobiliário, hoje
seriamente questionado pela sociedade esclarecida. Entre a frivolidade e a
depredação, a imagem do arquiteto encontra-se arranhada e desprestigiada, em um
contexto de mudanças urbanas iminentes.
O colapso das cidades coloca a sociedade, especialmente
arquitetos e urbanistas, perante desafios históricos. Assumir a consciência do
momento vivenciado pelo Brasil representa a grandeza de uma profissão destinada
a oferecer dignidade e qualidade de vida a todas as pessoas, de forma integrada
e solidária. A provocação está lançada: cabe à classe profissional assumir as
demandas de um momento que poderá estar marcado por ações de legítima
transcendência. Ou acompanhar o colapso das cidades com o de uma profissão que
não soube entender os recados do tempo e da sociedade.
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