quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

CIDADES COLAPSADAS



Cidades colapsadas
Roberto Ghione

            O debate acerca das cidades brasileiras tem ultrapassado, nos últimos tempos, o contexto profissional, acadêmico e disciplinar da arquitetura e urbanismo para alcançar toda a sociedade. Tal circunstância é produto do colapso que hoje sofrem as grandes e médias cidades, que imobilizam diariamente milhares de pessoas e complicam o natural desenvolvimento das atividades cotidianas. Este fenômeno coloca em crise a legitimidade das decisões políticas e urbanísticas assumidas nas últimas décadas e questiona o próprio conceito de democracia, que decide políticas urbanas em benefício de setores e em detrimento do interesse geral.

            A sociedade brasileira encaminha-se para ser urbana. Hoje, mais de 80% da população mora em cidades. Esta realidade determina que o desenvolvimento destas condicione o do próprio país, enquanto o nível de urbanidade e civilidade vai marcar o grau de civilização que alcançará o Brasil como nação.

            O tempo presente é o das cidades, e da inteligência e sensibilidade com que se afrontem suas políticas e gestões dependerá o destino do país. O colapso das cidades e a mobilização social que ele provoca constituem uma oportunidade para refletir e propor alternativas de desenvolvimento urbano com justiça, integração social e preservação do patrimônio cultural e ambiental, com possibilidades efetivas de saldar a dívida interna que tem levado ao caos atual.

            O colapso das cidades começou, de fato, muitas décadas atrás, com os processos de transferência de população rural para o meio urbano. A persistente desigualdade social e sua manifestação em favelas que comprometem a idéia de cidadania de grande parte da população desafiam os atuais gestores. O colapso, sofrido durante décadas por um setor da sociedade (majoritário, porém sem capacidade de organização e representação até uma década atrás), evidencia-se nos processos de exclusão, cujas conseqüências manifestam-se na violência que assola as cidades. As classes médias e altas resolveram morar em edifícios defensivos e condomínios fechados como meios de proteção. Com isso, agravaram a exclusão, abandonaram a apropriação dos espaços públicos e estimularam o uso do automóvel particular como meio de transporte. Este processo, que adiou durante décadas a instrumentação de políticas urbanas integradoras, se reflete no atual colapso total, que tem travado e imobilizado a todos: ricos e pobres. 

            Violência urbana e imobilidade são os fatores determinantes do colapso, que resumem inúmeras calamidades sofridas pelas cidades, desde a falta de saneamento até a vergonhosa exclusão que divide os brasileiros entre cidadãos de primeira e de última. A sociedade deu sinais de reação com os movimentos de junho, que dentre a difusa variedade de reivindicações, as referidas à cidade possuem um lugar de destaque. Desde as causas relacionadas ao transporte público gratuito até as exigências de equipamentos públicos “padrão FIFA”, os temas urbanos integram uma parte significativa dos reclames pela dignidade cidadã.

            Crise é sinônimo de oportunidade. Cidades colapsadas significam a chance de reivindicar o papel social da arquitetura e do urbanismo. A sociedade tem considerado o arquiteto, nos últimos tempos, como profissional ligado às classes privilegiadas, visão anacrônica, porém persistente, alimentada pela profusão de colegas dedicados à decoração e interiores, assim como a persistente propaganda em colunas sociais, lojas e revistas especializadas. A esta situação acrescenta-se, como resultado dos movimentos sociais em prol de cidades mais justas e integradas, a visão do arquiteto depredador, obediente das determinações do mercado imobiliário, hoje seriamente questionado pela sociedade esclarecida. Entre a frivolidade e a depredação, a imagem do arquiteto encontra-se arranhada e desprestigiada, em um contexto de mudanças urbanas iminentes.

            O colapso das cidades coloca a sociedade, especialmente arquitetos e urbanistas, perante desafios históricos. Assumir a consciência do momento vivenciado pelo Brasil representa a grandeza de uma profissão destinada a oferecer dignidade e qualidade de vida a todas as pessoas, de forma integrada e solidária. A provocação está lançada: cabe à classe profissional assumir as demandas de um momento que poderá estar marcado por ações de legítima transcendência. Ou acompanhar o colapso das cidades com o de uma profissão que não soube entender os recados do tempo e da sociedade.

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