Por, Raquel Rolnik
O Masp e a casa da sogra.
Se nos choca ver o vão livre ocupado, é de políticas públicas decentes que necessitamos, com urgência.
Há duas semanas o "Estadão" defendeu em seu editorial o cercamento do 
vão livre do Masp como forma de proteger o museu da ameaça de 
"viciados", "traficantes", "moradores de rua" e "grupos de 
manifestantes" que tomaram conta do espaço. 
O jornal reverberou declarações do curador do museu, Teixeira Coelho, 
que, diante da recusa do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico 
Nacional em aceitar seu pedido de instalação de grades no vão livre, 
classificou tal posição como "um atraso". 
Outra solução levantada pelo editorial seria "uma ação enérgica" da 
polícia, "para colocar cada um no seu devido lugar", já que o vão livre 
se tornou "a casa da sogra", "onde qualquer um faz o que bem entende". 
Reportagem da Folha da última sexta-feira estampa barracas de 
camping ocupando o espaço, servindo de moradia a pessoas sem teto, e 
reitera a imagem de "abandono" do lugar. 
Não é à toa que o Masp se tornou um dos símbolos de São Paulo, além de 
um dos lugares mais apropriados pelos paulistanos. Poucos são os espaços
 da cidade que estabelecem uma relação tão bem-sucedida entre o público e
 o privado, a cultura, a arte e a vida cotidiana dos cidadãos. 
Na contramão dos equipamentos culturais desenhados para serem monumentos
 de celebração a uma arte-mercadoria, glamourizada e identificada com as
 elites, o Masp nasceu para ser uma espécie de antimuseu, radicalmente 
aberto para a cidade. 
Em filme de 1972, Lina Bo Bardi, autora do projeto, fala sobre o Masp: 
"[...] minha preocupação básica foi a de fazer uma arquitetura feia, uma
 arquitetura que não fosse uma arquitetura formal, embora tenha ainda, 
infelizmente, problemas formais. Uma arquitetura ruim e com espaços 
livres que pudessem ser criados pela coletividade. Assim nasceu o grande
 belvedere do museu, com a escadinha pequena. A escadinha não é uma 
escadaria áulica, mas uma escadinha-tribuna que pode ser transformada em
 um palanque. Eu quis fazer um projeto ruim. Isto é, feio formalmente e 
arquitetonicamente, mas que fosse um espaço aproveitável, que fosse uma 
coisa aproveitada pelos homens". 
O vão livre do Masp é, portanto, o próprio museu. E os moradores da 
cidade, celebrando este belo presente, afirmam todos os dias seu caráter
 público: heterogêneo e múltiplo, ocupado e povoado por todo e qualquer 
tipo de gente, de evento e de situação, afirmando ali a dimensão pública
 da arte, da cultura e da cidade. 
Se nos choca e indigna ver o vão do Masp (e outros espaços públicos) 
ocupado por pessoas viciadas em crack e moradores sem teto, é de 
políticas públicas decentes de saúde mental, de moradia e de assistência
 social que necessitamos, com urgência. 
Não são as grades nem a repressão policial que vão enfrentar a situação 
de vulnerabilidade em que se encontram muitos paulistanos. Se eles estão
 ali, expondo a precariedade e a situação limite de sua existência, é 
porque, simplesmente, não há nada nem ninguém que os acolha, propondo 
alternativas reais para essa situação. 
A imagem das barracas armadas no Masp só afirma a urgência de 
implementação de políticas que avancem nesta direção. Uma boa gestão de 
cidade mantém a qualidade de seus espaços públicos cuidando tanto de seu
 estado físico de conservação quanto da vulnerabilidade de parte de seus
 cidadãos. 
Se o vão livre do Masp tem sido cada vez mais palco de manifestações, é 
justamente por acolher de forma tão eloquente uma das reivindicações 
centrais dos protestos recentes: a necessidade de constituição de uma 
esfera verdadeiramente pública no Brasil. 
 FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO
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