terça-feira, 22 de outubro de 2013

PERIFÉRICOS E PROVINCIANOS



Periféricos e provincianos.
por Roberto Ghione*

O conceito de periferia está atrelado, naturalmente, à idéia de centro, isto é, às relações entre um espaço físico ou um sistema social, econômico ou cultural com significados e destaque em relação a espaços ou grupos sociais com menores níveis de desenvolvimento. A configuração das periferias físicas ou culturais se produz pela discriminação unilateral de um centro que assume uma situação de domínio ou evolução maior, ou pela consciência dos próprios setores que se assumem “periféricos” e colocam-se em um patamar inferior. Esta última condição revela uma evidente subordinação de determinados grupos perante estágios mais evoluídos, que são considerados referências para o desenvolvimento próprio.

A história dos países latino-americanos revela a condição periférica do continente. Periferia por dominação e imposição no período colonial, e periferia por decisão própria após as independências políticas, quando se adotaram modelos de desenvolvimento europeus no Século XIX e americanos durante o Século XX. Esses modelos, transferidos acriticamente, definem uma cultura tupiniquim que condiciona, até hoje, um desenvolvimento social e cultural autêntico, baseado nos valores de tempo e lugar para a construção de uma identidade genuína.

A arquitetura e o urbanismo são, salvo honrosas exceções, expressões eloqüentes desses processos de colonização cultural desde dentro. Se bem a historiografia concebida nos países “centrais” ignorou e desvalorizou, durante longos períodos de tempo, as expressões da arquitetura colonial americana por considerá-las “imperfeitas” (excelentes e originais exemplos derivados da circunstância europeia na América, em mestiçagem com os restos das culturas locais), desde aqui, a burguesia intelectualizada dominante assumia a importação dos modelos externos como símbolos de progresso e desenvolvimento social, econômico e cultural. A ideologia de “imitar o que dá certo” marcou o desenvolvimento do continente desde finais do Século XIX, consciência que perdura até nossos dias.

A condição periférica é ideológica. Assume uma posição de relacionamento com um centro que orienta teorias, métodos e processos de evolução. Atua no contexto próprio com tendências a adotar ou adaptar modelos e soluções de referências comprovadas sem maiores questionamentos. 

Podemos considerar, como uma variante de periferia, a condição de provincianismo e arriscar que, diferente da primeira, esta se caracteriza pela ausência de ideologias. A atitude provinciana assume uma condição de reflexo acrítico, uma postura entre alegre e descompromissada que assume como próprias circunstâncias alheias. 

No contexto periférico e provinciano, os exemplos fazem parte da cultura e do cotidiano de tal modo que superam qualquer atitude crítica e reflexiva. Uma sociedade que proclama sua cidade de “Veneza brasileira” demonstra a condição de provincianismo sem limites, assim como outras que adotam determinadas imagens como modelo de desenvolvimento (as de Dubai são hoje as mais cotizadas). Refletem uma ansiedade de desapego da realidade na procura de sonhos de realização e progresso. O orgulho provinciano se manifesta em pavimentos de altura dos edifícios, em páginas de coluna social, em novos shoppings centers e no mais novo objeto de desejo: a ponte estaiada. As imagens e nomes tomados de contextos “centrais” permitem fugas para situações supostamente melhores ou provedoras de status social, que são habilmente manipuladas pela mídia. A profusão de termos estrangeiros (ingleses para os aspetos comerciais, franceses para os relacionados com moradia ou cultura) perdura condições de subordinação cultural. O sonho de morar em um “chateau”, “ville”, “maison” “residence” ou “boulevard” cativa as mentes provincianas e estimula a imaginação dos marqueteiros imobiliários.

A consciência periférica é uma questão ideológica, assim como o antídoto para superá-la. Estimular a idéia de centro e a valorização dos processos culturais próprios (incluindo aqueles de adoções de modelos “centrais”) são instrumentos válidos para superar a dependência. Contrapor, aos sistemas de adoção, outros de adaptação ou de recriação por meio de elementos próprios ou alheios, integrações entre ordens universais e locais, podem ser métodos válidos para a construção de uma identidade cultural diferenciada a partir das circunstâncias próprias. A história tem demonstrado a validade desses caminhos. Os processos de mestiçagem da arquitetura colonial com a indígena, assim como a força da modernidade carioca e pernambucana, do brutalismo paulista, ou de determinadas resistências regionais, dentre outros, marcam caminhos válidos para definir a identidade cultural brasileira. 

O estímulo de atitudes críticas, que valorizam o “pensar” antes que o “fazer”, torna-se imprescindível na hora de formalizar, avaliar e decidir intervenções de arquitetura e urbanismo no espaço social. Conceber a arquitetura como produção cultural, e não como transação comercial, é um caminho para a valorização profissional e a atuação do arquiteto como agente de cultura, e não como profissional manipulado pelos interesses do mercado. Assumir essa consciência significará, dentre outras coisas, a superação da condição periférica e provinciana e a construção de uma identidade comprometida com os valores da cultura local.


ROBERTO GHIONE é arquiteto da VPRG Arquitetura, formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, especializado em Historia e Crítica da Arquitetura, Preservação do Patrimônio e Planejamento Urbano.

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