Publicado
originalmente no Estadão.com:
Notícias de
uma guerra "não declarada": mais de 200 mortos, entre civis (com ou
sem ficha criminal) e policiais militares desde o início de outubro. Mas nem
adianta passar a régua, pois a conta não fecha aí. Na madrugada seguinte, mais um
punhado de gente cai na vala comum das páginas da metrópole e vira estatística.
De um lado, o "salve geral" disparado pelo Primeiro Comando da
Capital em agosto. De outro, a tropa do governo. No fogo cruzado, a cidade.
Difícil
dizer que se trata de um confronto "velado" entre PM e PCC. Nessa
semana, observadores da imprensa internacional miraram São Paulo como uma
"cidade sangrenta". Foram reportagens no Clarín, El País, Le Monde, The
Economist, The Guardian, The Wall Street Journal. Até a Al Jazeera reportou a onda de
violência paulistana, ao passo que The New York Times questionou a garantia de
segurança no Brasil durante o mundial de 2014, um provocativo "imagine na
Copa..." para gringo ler.
"Mas
segurança não é só assunto de polícia. Tem a ver com urbanismo, mobilidade e
cultura", critica Enrique Peñalosa, economista e historiador colombiano
formado pela Universidade Duke, na Carolina do Norte, e P.h.D. pela
Universidade de Paris. Para Peñalosa, para conter a violência urbana é preciso
articular inteligência policial e intervenções nos campos do planejamento urbano
e projetos socioculturais.
Prefeito
de Bogotá entre 1998 e 2011, o urbanista transformou a capital colombiana com
ações focadas em mobilidade e sustentabilidade, reduzindo drasticamente o índice
de homicídios na cidade, antes considerada uma das mais violentas da América
Latina. Já fez conferências em universidades como USP, PUC-RJ, Princeton,
London School of Economics, Harvard, Chicago e Colúmbia, e assessorou governos
na Ásia, África, Américas e Europa com estratégias e políticas urbanas. Neste
ano, visitou São Paulo e Porto Alegre, onde participou do Fronteiras do
Pensamento, em junho.
"Uma
cidade se expressa, vibra, vive. É feita de gente na rua", diz ao Aliás.
"O papel do Estado é estar presente, em todos os cantos da cidade. Que não
haja rincões que fiquem à margem. Se o Estado não respeita a vida humana, por
que os bandidos o fariam?", questiona. "Devemos mostrar símbolos de
igualdade e de democracia. São bibliotecas, ciclovias, colégios, parques, ruas
iluminadas. E, principalmente, gente ocupando esses espaços públicos",
destaca. Seguindo as ideias de Enrique Peñalosa, talvez falte mostrar, sem
pieguice, que ainda existe amor em SP.
São Paulo está vivendo uma onda de violência que obteve
repercussão internacional. Que paralelo podemos traçar com Bogotá, que já foi
considerada uma das cidades mais violentas da América Latina?
Posso
comentar a experiência de Bogotá, onde a segurança melhorou desde o fim da
década de 1990. Essa melhoria ocorreu na capital, antes de ocorrer no país como
um todo. Não foi consequência de uma mudança diretamente relacionada às
políticas do presidente Álvaro Uribe, mas de uma série de medidas do poder
municipal. Não há fórmulas fechadas, mas posso propor teorias: é a cidade. A
chave é a própria cidade.
Como assim?
A
cidade se expressa, vibra, vive. E uma cidade só se faz com gente na rua. Mas,
para isso, as pessoas precisam se sentir seguras nas ruas. Os cidadãos precisam
sentir que há legitimidade - o que é muito importante, mas altamente subjetivo.
Explico: o Estado precisa ser considerado legítimo pelos cidadãos. É corrupto?
É íntegro? Está dedicado a atender às necessidades dos mais vulneráveis para
construir, de alguma maneira, uma sociedade mais igualitária?
Se
há legitimidade, os cidadãos tendem a compreender e cumprir determinadas
normas, reportar e pedir punição aos que violam essas normas. Prefiro ilustrar
essa história assim: há 15 anos, dizia-se muito a expressão "cójalo,
cójalo, suéltelo, suéltelo" em Bogotá. Exemplo: um ladrão roubou a
carteira de uma senhora. Aí toda a gente gritava: cójalo, cójalo! Uma vez
preso, porém, muita gente começava a dizer: no, suéltelo, suéltelo! Deixe-o ir.
Isto é, de alguma maneira, a sociedade sentia que a situação era tão injusta
que a polícia não tinha nem autoridade moral nem legitimidade para poder
prender e castigar esses delinquentes.
Mas
a atitude mudou nestes últimos tempos. As pessoas precisam respeitar um governo,
e não temê-lo. Nesse sentido, o papel do Estado é estar presente, em todos os
cantos da cidade. Que não haja rincões que fiquem à margem. Essa presença não
se refere só à polícia, mas a projetos de educação, saúde e demais serviços
sociais, atendendo a todas as tarefas que deve atender. Afinal, segurança não é
só assunto de polícia.
Que outros campos estão envolvidos?
É
muito mais. Tem a ver com urbanismo, mobilidade urbana e cultura.
Ao
construir uma biblioteca imensa e maravilhosa, queremos dizendo: o conhecimento
é mais importante que o dinheiro. É complicado, porém, ver um jovem numa moto,
com joias, roupas e tênis caros, talvez vindos do tráfico, entrando com uma
gangue em um bairro. Que símbolos são esses? Expressam valores dos
narcotraficantes: você pode ostentar riqueza, independentemente da origem do
dinheiro. Devemos mostrar outros valores. É preciso ter conhecimento e cultura,
como a arte e a música. Então devemos ter bibliotecas lindas e colégios
espetaculares nos bairros mais pobres, para que aquelas crianças saibam que
elas importam - nas periferias, muitas crianças nem sabem a identidade do pai,
então é essencial que saibam que elas importam.
Outro
exemplo são os ginásios esportivos. Em Bogotá, assim como em São Paulo,
imagino, as crianças gostam de futebol. Bogotá e Londres têm 8 milhões de
habitantes. Mas os londrinos têm mais de 1.500 campos de futebol públicos. Nós
só temos 20. Vi que uma das ações mais eficazes para melhorar a segurança num
bairro periférico é um campo de futebol, comunitário e iluminado. Que pode
fazer um jovem de 16 anos às 8 horas da noite na periferia? É preciso ter
opções de lazer. É preciso ter mais e melhores centros culturais e esportivos
comunitários, ciclovias, parques arborizados, ruas iluminadas.
Mas
também é preciso ter a polícia. Sociedades ricas e avançadas socialmente, como
França e Suíça, têm mais policiais por milhão de habitantes que Bogotá e São
Paulo. Mas eles são bem treinados e bem pagos. Na Colômbia e no Brasil também
há muita impunidade para os delitos considerados "menores". Isso
porque não investimos em policiais, juízes, presídios e leis que se voltem para
esses delitos "menores". Essa sensação de impunidade é terreno fértil
para o crime organizado.
Nessa linha, que medidas foram adotadas em Bogotá?
Nas
zonas mais marginais da cidade, construímos bibliotecas, colégios de luxo,
jardins sociais, programas de nutrição, projetos de infraestrutura. Uma das
principais ideias era levar escolas, tão boas quanto os melhores colégios
particulares, para os cantos mais pobres da cidade. Queríamos mostrar respeito
pela dignidade humana. Se o Estado não respeita a vida humana, por que os
bandidos o fariam? É uma questão de igualdade, o que é muito diferente de
simplesmente dar esmola aos mais pobres.
Uma
cidade precisa de símbolos de igualdade e de democracia. Numa sociedade como a
nossa, muitos cidadãos não têm carro, mas precisam se deslocar diariamente para
trabalhar, por exemplo. Então adotamos o TransMilenio, um sistema de ônibus
inspirado no modelo de Curitiba, e construímos centenas de quilômetros de
ciclovias.
Por quê?
Para
dizer que um cidadão numa bicicleta de US$ 30 é tão importante quanto um
cidadão num carro de US$ 30 mil. Outro exemplo: a duas quadras do palácio
presidencial, tínhamos 23 hectares da pior degradação humana possível e
imaginável, um inferno de casas abandonadas por décadas e dominado pelo tráfico
de drogas, com os mais altos índices de homicídio do mundo. A cracolândia de
São Paulo? É um paraíso comparado ao que existia ali. Não é nem remotamente
parecido. Desapropriamos essa área, demolimos mais de 600 construções,
iniciamos um megaprojeto de reabilitação. O inferno virou um imenso parque.
Mas Bogotá não é uma cidade ideal...
Não.
Fizemos muito, mas ainda falta muito, muito, muito. Ainda sobre segurança, o
índice de homicídios é de 17 para 100 mil habitantes. (Segundo o relatório das
Nações Unidas de 2011, São Paulo tem 10 homicídios por 100 mil habitantes). Mas
em capitais europeias, são 3 ou 4. Em cidades japonesas, talvez 1 ou 2.
Em
Bogotá, ainda há muitos delitos, como os assaltos, muitos à mão armada, que
continuam com índices altos e se agravaram nos últimos tempos. Segundo as
estatísticas, uma em quatro pessoas já foi vítima de um delito no último ano.
Há muitas gangues e muita violência entre os jovens. Mas a cidade está aí para
ser ocupada. Não dá para viver com medo, sem sair de casa, dentro dos carros e
dos shoppings.
Infelizmente,
os shoppings nas grandes cidades do mundo em desenvolvimento, inclusive Bogotá
e São Paulo, foram substituindo o espaço público como lugar de encontro. Isso é
gravíssimo, pois os espaços públicos acabam abandonados. Segurança tem a ver
com o desenho urbano, com uma melhor integração entre o público e o particular.
O interesse público deve prevalecer sobre o particular, para mostrar que há
democracia. Uma cidade deve se destinar especialmente aos mais vulneráveis - as
crianças, os velhos, os pobres - e não aos carros, aos privilegiados, aos
ricos.
No Brasil, cidades de São Paulo e Santa Catarina estão
assistindo a ações atribuídas ao PCC. Que espaço tem o crime organizado nas
cidades colombianas hoje?
Vivemos
uma guerra de muitos anos contra megaorganizações criminosas. Mas a guerrilha
não conseguiu penetrar nas cidades - exceto nos tempos de Pablo Escobar com os
grandes cartéis de Medellín e Cali.
A
guerrilha e o crime organizado, apesar de muito poderosos, ficaram na zona
rural e na selva. Para estar alerta contra o terrorismo do narcotráfico, os
serviços de inteligência do Exército e da polícia colombiana devem ser
extremamente sofisticados. Além disso, os cidadãos colaboram com a polícia nos
bairros. Há muitos informantes, o que é essencial para os serviços de
inteligência: ter olhos em cada bairro, em cada rua. As comunidades dos bairros
populares são organizadas, com líderes importantes, que impedem a entrada fácil
de líderes delinquentes.
No Brasil, muitos assaltos e crimes são cometidos em
motos, tanto que há quem defenda o fim das garupas, como em Bogotá...
Não
gosto dessas medidas, pois me parecem preconceituosas. Sim, as motos devem
cumprir as normas de trânsito, com sanções drásticas se não o fizerem. Em
Bogotá tivemos essa restrição de passageiros nas garupas por um tempo, mas não
mais.
Por que a violência urbana é tão forte nas cidades latino-americanas?
A
criminalidade e a violência urbana são fenômenos principalmente
latino-americanos. Não de toda a América Latina - no Chile, não é assim. Também
há cidades africanas muito violentas. Mas na Europa, no Canadá e na Ásia, por
exemplo, não há. É óbvio que há crimes, mas jamais na mesma escala.
A
violência urbana é um reflexo da falta de legitimidade do Estado e da ausência
de uma sociedade forte. Em muitos países latino-americanos, a sociedade se
resignou a tolerar a criminalidade. Então, a lei praticamente a tolera. Mas há
muitas metrópoles mundiais muito seguras: Copenhague, Tóquio, Toronto, Zurique.
Que sugestões o Senhor teria para São Paulo?
É
preciso olhar para a cidade. Como disse, a cidade precisa priorizar o humano,
em todos os sentidos. Parece muito óbvio, eu sei. Mas, infelizmente, isso não é
feito. Já visitei São Paulo muitas vezes. É uma cidade com uma energia
maravilhosa, mas há muito a melhorar. Aliás, com todo o respeito, não me parece
que tantos helicópteros particulares sobrevoando São Paulo sejam úteis para
construir legitimidade e coesão social.
Em
cidades como Londres e Nova York, os ricos usam transporte público e vão aos
parques. São Paulo precisa de bibliotecas, ciclovias, parques. Conheci uma
iniciativa ótima de vocês: o Sesc, um exemplo de integração comunitária. O Sesc
Pompeia é ótimo. Mas um certamente não basta. Em uma cidade do tamanho de São
Paulo, é preciso ter mais de 300 Sescs.
* ENRIQUE PEÑALOSA: ECONOMISTA E HISTORIADOR COLOMBIANO, PH.D. PELA
UNIVERSIDADE DE PARIS. FOI PREFEITO DE BOGOTÁ (1998-2001).
Fonte: Estadão.com
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