É importante perceber
que a questão das enchentes urbanas passa tanto pelo poder público, pelas
diretrizes de urbanização e gestão das águas, quanto por cada um de nós.
(Fernando Luiz Lara)*
No
português coloquial brasileiro, a palavra asfalto significa o contrário de
favela. A favela começa onde termina o asfalto e vice-versa. Asfalto é, assim,
sinônimo de cidade formal, cidade legal, sendo a favela, informal e ilegal, o
seu oposto. Esta questão vai muito além da semântica e tem implicações
profundas no modelo de desenvolvimento que estamos seguindo há séculos, sem
maiores correções de rumo, apenas pisadas eventuais no freio ou no acelerador
da economia. Usado pela primeira vez no Brasil pelo prefeito do Rio de Janeiro
Francisco Pereira Passos na reforma do centro da cidade, que demoliu 1.200
casebres e construiu 300, o asfalto entrou no imaginário brasileiro da forma
mais autoritária e excludente possível. De lá para cá, superamos o
autoritarismo e lutamos bravamente contra a exclusão, mas o asfalto continua. É
absolutamente angustiante perceber que, apesar de todos os avanços democráticos
da última década e do sucesso das políticas públicas de inclusão social, o
modelo de construção (literalmente) de um país é o mesmo desde o governo JK:
todo problema se resolve com mais cimento e mais asfalto.
Asfalto,
cabe lembrar, é um subproduto do refino do petróleo. A borra do óleo cru
(alcatrão) é misturada com um agregado miúdo (brita fina) para produzir uma
massa flexível enquanto aquecida e razoavelmente resistente quando resfriada. E
esta massa de borra de petróleo com brita cobre uma porção significativa das
nossas cidades, chegando quase a 20% da superfície total. Junto com seu
inseparável companheiro, o cimento, na forma de concreto (que, como o asfalto,
também tem pedra na sua fórmula) ou de pisos em geral, 80% das áreas públicas
das cidades brasileiras estão impermeabilizadas. Escrevendo sobre Roberto Burle
Marx, o crítico de arte carioca Paulo Venâncio Filho cunhou uma frase que, no
meu entender, resume tudo: o brasileiro só sabe se relacionar com a natureza
tendo o cimento como mediador.
Os
últimos 20% são áreas de canteiros em praças ou parques públicos, os únicos
espaços em que a água que cai torrencialmente de novembro a março tem a chance
de voltar à terra sem a intermediação da infraestrutura de escoamento, que é
formada pelos acima citados asfalto e cimento. E as áreas privadas da cidade
que formam cerca de 75% da superfície total não ficam nem um pouco atrás,
cobertas por telhados em cima de edifícios ou pelo cimento que os rodeia. Em
resumo, nossas cidades têm um índice de impermeabilidade altíssimo. Cada vez que
você passar por uma rua alagada, logo depois de uma tempestade de verão,
lembre-se disto, a água não tem para onde ir, pois a cidade está toda
impermeabilizada.
As
conversas sobre o tema sempre passam por aquilo que alguém deveria fazer. E
esse alguém é sempre definido como o outro: o poder público, as autoridades, os
da rua de cima. A expansão urbana desenfreada, a produção agrícola em larga
escala: é importante perceber que a questão das enchentes urbanas passa tanto
pelo poder público, pelas diretrizes de urbanização e gestão das águas, quanto
por cada um de nós, em nossos pedacinhos de terra na cidade.
O manejo
da água da chuva é público, mas a absorção residencial é um problema doméstico,
privado. Com todos os quintais impermeabilizados, a municipalidade passa a
controlar 100% do volume de água, mas só dispõe de 25% da área da cidade para
tanto. Cada vez que chove 100mm (e isso tem ocorrido frequentemente), um
quarteirão médio (100m x 100m, ou 1 hectare) recebe 100 mil litros de água. Se
fôssemos segurar todo esse volume num piscinão, seria necessário um lote de
12x30 com profundidade de três metros – isso para cada quarteirão.
Em São
Paulo, um volume gigantesco de água corre rapidamente para os vales dos rios
Tietê e Pinheiros cada vez que chove forte. Em Belo Horizonte, os fundos de
vale são inundados várias vezes ao ano, como aconteceu com a avenida Tereza
Cristina no dia 12 de dezembro de 2011, aniversário da cidade. Se parte dessa
água tivesse sido absorvida ou pelo menos retardada por canteiros e áreas com
pavimento permeável, a enchente poderia ter sido evitada. Cada metro quadrado
de solo permeável devolve entre 1,5 mil (São Paulo) a 1,8 mil (Rio de Janeiro)
litros por ano ao subsolo. Se cada lote urbano tivesse 10 metros quadrados de
canteiros rebaixados, 80% da água da chuva anual seria retida e encharcaria
devagar na terra, recarregando os lençóis freáticos e ajudando a manter a
cidade mais fresca no dia seguinte, com o processo de evaporação. Mas, ao invés
disto, cada vez que chove temos mais e mais água correndo mais e mais rápido
sobre o asfalto liso.
Para
resolvermos parte do problema das enchentes urbanas, temos que entender que a
questão da permeabilidade do solo é problema de todos; que precisamos promover
uma mudança cultural: 1) na forma como o poder público trata o problema; 2) na
forma como as pessoas se sentem envolvidas com ele.
E é aqui
que entra a responsabilidade do poder público. No caso, da presidenta Dilma
Rousseff, que ocupa o mais alto cargo no Estado Brasileiro, dos governadores,
dos prefeitos e de todos que, de uma forma ou de outra, participam do processo
de projeto e execução das obras de infraestrutura. Mas vamos nos ater ao
Executivo Federal e à presidenta Dilma, que, quando ministra, elaborou e
executou o maior programa de infraestrutura urbana jamais feito na história
deste país (dá para ouvir a voz do presidente Lula na frase anterior, não?).
De acordo
com os números do PAC disponíveis na página do governo federal, foram
investidos R$ 600 bilhões em obras de infraestrutura entre 2005 e 2010. Outros
R$ 500 bilhões ainda serão investidos até 2014. Não vou nem entrar aqui no
debate sobre as obras de infraestrutura para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de
2016 porque são, via geral, um tremendo retrocesso em termos de processos de
participação e de investimentos na função social dos equipamentos urbanos. Vou
me ater aos dois vetores principais de intervenção do PAC I: as obras de
saneamento e acessibilidade nas favelas e o programa Minha Casa Minha Vida.
As obras
de saneamento e acessibilidade nas favelas financiadas pelo PAC se diferenciam
do modelo dos governos do século XX por manter a população no lugar e levar
infraestrutura e equipamentos onde antes não havia. Antes dos anos 1990, a
receita padrão para resolver o “problema” das favelas era demolir tudo e
realocar as famílias em algum conjunto de casinhas mínimas construídas sempre
muito longe dos centros das cidades, em um local onde o preço da terra fosse
ainda muito barato. Ora, preço da terra é uma função, entre outras coisas, das
amenidades e dos equipamentos aí disponíveis. Deslocar milhares de pessoas para
áreas longínquas significa privá-las de oportunidades de trabalho e afastá-las
de toda uma rede de oportunidades existente no centro das cidades. O caso mais
emblemático é o da Cidade de Deus na zona Oeste do Rio, destrinchado pela
narrativa de Paulo Lins e jogado ao mundo pelo filme de Fernando Meirelles.
Como bem mostram as cenas iniciais do filme, Cidade de Deus foi um conjunto de
pequenas casas construído pela administração Carlos Lacerda em 1967, cujo
isolamento (físico, social e econômico) serviu de combustível para a violência
em todos os níveis. Demoramos quase um século para aprender que favela não é um
problema, mas sim uma solução precária e incompleta.
Mas a
maior ironia (para não dizer tragédia) é perceber que o modelo persiste, agora
rebatizado de Minha Casa Minha Vida. São R$ 12 bilhões por ano para construir
habitação preferencialmente para famílias cuja renda esteja abaixo de R$ 1.600.
Mas basta uma análise preliminar das diretrizes de financiamento da Caixa
Econômica Federal (CEF) para perceber o atraso conceitual do programa. Para
começar, a CEF dita um valor máximo de financiamento de R$ 58 mil por unidade
no caso de SP e DF (os mais caros). Descontado o custo da construção
(aproximadamente R$ 1 mil por m² ou cerca de R$ 45 mil por apartamento) sobram
R$ 13 mil para pagar o terreno e todas as obras de infraestrutura interna,
incluindo escadas e caixas d'água, por exemplo, que são, há de se convir, absolutamente
fundamentais. No caso da infraestrutura externa ao edifício, cabe à prefeitura
(quase sempre) ou às construtoras (absolutamente nunca) pagar por tudo. É como
se calçadas, pontos de ônibus, áreas de lazer, parquinhos, campos de futebol ou
mesmo a simples arborização fossem luxos e não componentes essenciais de
qualidade de vida. Como no velho BNH, a CEF financia as construtoras e repassa
a dívida na forma de hipotecas para os moradores qualificados. Como no velho
BNH, as construtoras não têm nenhum risco. Elaboram projetos simplistas, muitas
vezes cópias de desenhos que a própria CEF fornece. Compram terrenos baratos na
periferia longínqua, aprovam um arruamento básico a ser executado com o uso de
apenas uma máquina motoniveladora, convencem a prefeitura a estender as redes
de água, luz e esgoto e constroem as casas ou apartamentos da forma mais barata
e mais rápida possível. Terminada a obra e recebido o dinheiro, o lucro é
simples, o risco é mínimo.
A conta
de verdade cai no colo da prefeitura, que no futuro próximo vai ser pressionada
a fornecer toda a infraestrutura que devia ter sido feita junto com as unidades
habitacionais. Praças, quadras de esporte, calçadas, linhas de ônibus, sinais
de trânsito, escolas, creches, clínicas e parques. Tudo isso vai demorar anos,
talvez décadas para ser construído, com efeitos negativos na qualidade de vida,
na saúde e na produtividade de quem mora aí. E o primeiro a chegar vai ser o
asfalto. Antes da creche ou do posto de saúde, antes do parque e infelizmente
antes das árvores, chega o asfalto. O que não é de se estranhar, dado que os
moradores das periferias das grandes cidades passam em média três horas por dia
em ônibus e vans, um custo altíssimo que não é nunca computado nesta equação.
Enquanto os centros das grandes cidades se esvaziam a olhos vistos, continuamos
com esta expansão irracional. Importante lembrar que a densidade das cidades
brasileiras tem caído desde os anos 1980, na contramão de qualquer conceito de
sustentabilidade.
Os
centros de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, têm milhões de metros
quadrados de construção subutilizados. São edifícios de escritórios com 15% de
ocupação ou prédios de apartamentos antigos cujo valor imobiliário é baixo (sem
garagem e um só banheiro), mas com alto custo de manutenção. Transformar estes
espaços em moradia barata é viável e muito mais eficiente a longo prazo, mas
não existe linha de financiamento ou de incentivo para construtoras menores ou
mesmo mestres de obra fazerem as reformas necessárias. O resultado é uma
concentração gigantesca de recursos em obras fáceis, onde não há invenção nem
risco. E o pior, não há futuro. Expandir as cidades ad infinitum em um momento
em que a taxa de natalidade está abaixo do nível de reposição implica cair na
armadilha norte-americana de abandonar o centro. Isto só faz sentido na lógica
do capital imobiliário que precisa continuar comprando terra barata e vendendo
caro. E se for para fazer apartamentos de R$ 50 mil, que seja sem risco.
A raiz
desta ideia é a mesma em Belo Monte, no PAC ou no Minha Casa Minha Vida: tudo
se resolve com mais asfalto e mais cimento. Afinal de contas, o asfalto é o
antônimo da favela e do subdesenvolvimento. Há algumas semanas, uma foto da
presidenta Dilma Rousseff circulou na internet e aquela imagem, sim, diz mais
que mil palavras. Uma jovem Dilma segura de suas convicções e ciente de sua
condição de prisioneira encara o terror da tortura e olha de cabeça erguida
para os militares que a rodeiam, enquanto estes escondem o rosto claramente com
medo do que a história lhes reserva.
Dá
calafrios imaginar que o modelo de incentivo à construção do governo Lula e do
governo Dilma é parecido com o modelo do governo Medici. É até compreensível
que nossas lideranças de esquerda, formadas nos anos 1970, sejam tão
desenvolvimentistas. Mas o conceito mesmo de desenvolvimento já vai se
deslocando aos poucos da ideia de mais asfalto e mais cimento e é hora de a
esquerda repensar sua política de construção de infraestrutura. Insistir neste
tipo de política urbana significa que, quando começar a jorrar pra valer o óleo
grosso do pré-sal, vamos multiplicar por 3 ou 4 a produção de asfalto, que é a
borra do refino, e vamos consequentemente impermeabilizar 3 ou 4 vezes mais
área, gerando inevitavelmente mais enchentes. A outra consequência de insistir
neste modelo de asfalto e cimento como solução para tudo é ainda mais perigosa.
Como já anunciado nas eleições presidenciais de 2010, um discurso conservador
disfarçado de ambientalista tem uma aceitação significativa na classe média
(antiga ou recém-chegada, tanto faz) e pode causar um retrocesso de décadas no
caminho de superação das desigualdades que estamos com muito custo trilhando.
Custamos
muito a aprender que a favela não é problema. Agora urge aprender que o asfalto
não é solução.
*Fernando
Luiz Lara é belorizontino, arquiteto e professor na Universidade do Texas em
Austin, EUA.
FONTE:
REVISTA FÓRUM
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