Publicado originalmente no site Planeta Sustentável:
É
clichê e piegas, mas é preciso dizer: por trás - e ao lado - de todo homem há,
sim, uma grande mulher. No caso do planejador urbano dinamarquês Jan Gehl, que
se formou arquiteto em 1960 na Royal Danish Academy of Fine Arts, foi a esposa
psicóloga que o impediu de se tornar mais um "obcecado pela forma, sem
pensar na funcionalidade", como ele descreve a maioria dos colegas.
"Ela me provocava perguntando por que nós nunca pensávamos nos aspectos
humanos na hora de criar projetos para a cidade", conta. Gehl e a esposa
organizavam reuniões semanais em sua casa com outros colegas para discutir as
fronteiras (e possíveis ligações) entre sociologia, psicologia, arquitetura e
planejamento. Esses encontros foram o começo do que mais tarde se tornaria o
assunto da vida de Jan Gehl: como criar cidades melhores para as pessoas.
Em
1971 ele publicou seu primeiro livro, Life Between Buldings ("A vida entre
os prédios", em tradução livre, sem versão em português), em que se
debruça sobre o comportamento das pessoas nos espaços públicos e utiliza a
Strøget, a primeira rua de pedestres de Copenhague, como laboratório para
mostrar que priorizar as pessoas era o melhor para criar boas cidades. A
Strøget era uma importante avenida comercial e o anúncio de seu fechamento para
virar um calçadão em 1962 causou reações negativas. "Não somos
italianos", diziam os jornais para argumentar que o clima gélido da
Dinamarca impossibilitava uma vida ativa nos espaços públicos. "Um ano depois,
todos os comerciantes reconheciam: eles estavam errados", conta Gehl. As
vendas triplicaram e esse calçadão de quase 1 quilômetro passou a ser ocupado
pelos habitantes da cidade. Estudar o assunto fez com que Gehl criasse uma
metodologia de planejamento que prioriza as pessoas. Seu escritório, o Gehl
Architects, é o mais requisitado do mundo e já fez projetos, inclusive, para
São Paulo e Rio de Janeiro.
O que significa criar uma cidade
para as pessoas?
Você
já notou que sabemos tudo sobre o habitat ideal dos gorilas, girafas, leões,
mas nada sobre o Homo sapiens? Qual o lugar ideal para essa espécie viver?
Infelizmente, sabemos muito pouco. Boa parte dos profissionais que definem o
futuro de uma cidade, os arquitetos, urbanistas e políticos, estão preocupados
com outras coisas. Eles querem melhorar o trânsito, criar "skylines",
monumentos, pontes, mas nenhum deles tem na agenda o item "criar uma
cidade melhor para as pessoas viverem".
Certamente
não é uma cidade em que se precise passar três horas por dia dentro de um carro
preso no congestionamento. Mas uma das coisas que descobri em todos esses anos
de trabalho é que precisamos respeitar a escala humana. Em meu livro Cities for
People ("Cidades para pessoas") eu falo, por exemplo, sobre a
síndrome de Brasília, uma prática repetida em várias cidades do mundo. Brasília
nasceu para ser uma cidade planejada, certo? Pois bem, quando a olhamos do céu,
ela é incrível, mas quando a olhamos do chão, parece que estamos em uma maquete
fora de escala. É tudo grande demais, as distâncias são impossíveis de serem
percorridas pelo corpo humano e os monumentos são grandes demais para
apreciarmos a partir de nossa altura. Isso sem contar a falta de calçadas e
ciclovias. Se você não tem um carro em Brasília, fica impossível se locomover.
A escala humana, então, é a
chave para planejar cidades para pessoas?
É
uma das chaves. Temos que criar uma mudança de paradigma aqui. Antes de pensar
em mais ruas, ciclovias, transporte público ou mesmo na escala humana, é
preciso pensar: que cidade queremos? E aí, o que importa não são os elementos
do planejamento urbano, mas as coisas que nos fazem viver melhor. Quando os
planejadores quiserem chegar aí e não, por exemplo, ao melhor sistema de mobilidade
possível, aí sim estaremos em um caminho interessante para melhorar as cidades.
O senhor fala em trânsito,
problema grave no Brasil. Quais as soluções para essa questão?
O
congestionamento é, sem dúvida, um dos maiores problemas das grandes cidades do
mundo. E a chave para resolvê-lo é entender que a demanda correta não deve ser
por mais transporte público ou ciclovias ou calçadas. Deve ser por mais opções,
por mais liberdade de escolha de meios de se locomover do ponto A ao ponto B.
Só ciclovias ou só transporte público não resolvem, mas uma combinação dos dois
com boas calçadas e vias exclusivas de pedestres começam a deixar a cidade mais
interessante e a dependência que se desenvolveu do carro começa a diminuir.
Mas, ainda assim, muita gente vai continuar se locomovendo de carro, por
comodidade. Então, junto com o aumento de opções de locomoção, é preciso
diminuir o uso dos carros, dando menos lugar a eles. Quanto mais ruas, mais
carros, quanto menos ruas, menos carros. Se você oferecer infraestrutura, a
sociedade vai utilizá-la. Então, tirar espaço dos carros, ou proibir que
estacionem nas ruas, são algumas das formas de garantir que eles sejam menos
usados, em especial em curtos trajetos. E aí, as pessoas que realmente precisem
de um veículo para se locomover, seja porque a distância é longa demais, seja
porque é uma emergência, terão espaço para dirigir.
Parece tão difícil e tão longe
da nossa realidade...
Sim,
é um processo complicado. Hoje Copenhague é um exemplo mundial de uma cidade
boa para se viver, mas começamos nossa mudança de paradigma 50 anos atrás. A
chave para que tenhamos chegado até aqui foi dar um passo de cada vez. Não dá
para, de uma hora para outra, proibir os carros de estacionarem nas ruas. Mas
que tal proibir em um bairro? Ou em apenas uma avenida? E, no lugar onde os
carros estacionariam, criar uma ciclovia? Esse acaba sendo um projeto piloto,
as pessoas teriam tempo para se acostumar. E, quando começar a dar certo,
fazemos isso em outro ponto. Pouco a pouco a população vai entendendo como a
cidade pode melhorar. Eu tenho muito orgulho de dizer que moro em uma cidade
que todos os dias é um pouco melhor do que era no dia anterior.
Em Copenhague, um terço das
pessoas usa a bicicleta como transporte todo dia. As bicicletas devem ser
pensadas como solução em cidades grandes como São Paulo?
Certamente
sim. A bicicleta é um meio de transporte ágil que não polui e faz as pessoas se
exercitarem. A chave para integrar a bicicleta à mobilidade urbana de uma
cidade muito grande é não pressupor que as pessoas vão fazer todo o trajeto
pedalando. Pedalar 20 quilômetros pode ser ok para quem é jovem e tem
condicionamento físico, mas certamente não é uma prática para todos. Então a
bicicleta precisa estar integrada a outros meios de transporte. Bicicletários
deveriam existir na maioria absoluta dos pontos de ônibus, trens e metrô, para
que as pessoas possam fazer parte do trajeto pedalando e parte de metrô, por
exemplo. Bicicletas de aluguel que sigam os exemplos de Paris, Barcelona e Lyon,
onde as pessoas podem retirá-las e devolvê-las em diferentes pontos da cidade,
são ideais. Mas é fundamental que haja infraestrutura para pedalar. Se as
pessoas não se sentirem seguras, bicicleta continuará sendo um meio restrito
para se transportar.
Como a população deve participar
do processo da criação de cidades para pessoas?
É
preciso que as pessoas exijam as coisas certas. Se você, por exemplo, perguntar
a uma criança o que ela quer de natal, ela vai te responder uma lista de coisas
que já conhece. Uma criança nunca pediria algo de que nunca ouviu falar. O
mesmo vale para as demandas das pessoas em relação às cidades. É fundamental
que haja informação sobre como uma cidade pode ser melhor para que a sociedade
exija as coisas certas. Enquanto exigirem mais ruas para dirigirem seus carros,
as cidades vão continuar crescendo do jeito errado. Quando passarem a exigir
mais liberdade de locomoção, daí o governo terá que fazer algo a respeito. Em
Copenhague foi assim. Na década de 1970 a cidade estava tomada pelos carros.
Com a crise do petróleo, dirigir ficou muito caro e as pessoas começaram a
exigir infraestrutura para pedalarem em segurança. E as ciclovias foram, pouco
a pouco, tomando o lugar dos carros.
O planejamento urbano pode fazer
as pessoas mais felizes?
Planejamento
urbano não garante a felicidade. Mas mau planejamento urbano definitivamente
impede a felicidade. A pior coisa para a felicidade das pessoas é perder tempo
paradas no congestionamento. Se a cidade conseguir diminuir o tempo que você
fica parado no trânsito e lhe oferecer áreas de lazer para aproveitar com seus
amigos e sua família, ela lhe dará mais condições de ter uma vida melhor. O
planejamento urbano é uma plataforma para as pessoas serem felizes.
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