Periféricos
e provincianos.
por Roberto
Ghione*
O
conceito de periferia está atrelado, naturalmente, à idéia de centro, isto é, às
relações entre um espaço físico ou um sistema social, econômico ou cultural com
significados e destaque em relação a espaços ou grupos sociais com menores níveis
de desenvolvimento. A configuração das periferias físicas ou culturais se
produz pela discriminação unilateral de um centro que assume uma situação de
domínio ou evolução maior, ou pela consciência dos próprios setores que se
assumem “periféricos” e colocam-se em um patamar inferior. Esta última condição
revela uma evidente subordinação de determinados grupos perante estágios mais
evoluídos, que são considerados referências para o desenvolvimento próprio.
A
história dos países latino-americanos revela a condição periférica do
continente. Periferia por dominação e imposição no período colonial, e
periferia por decisão própria após as independências políticas, quando se
adotaram modelos de desenvolvimento europeus no Século XIX e americanos durante
o Século XX. Esses modelos, transferidos acriticamente, definem uma cultura tupiniquim
que condiciona, até hoje, um desenvolvimento social e cultural autêntico,
baseado nos valores de tempo e lugar para a construção de uma identidade
genuína.
A
arquitetura e o urbanismo são, salvo honrosas exceções, expressões eloqüentes
desses processos de colonização cultural desde dentro. Se bem a historiografia
concebida nos países “centrais” ignorou e desvalorizou, durante longos períodos
de tempo, as expressões da arquitetura colonial americana por considerá-las
“imperfeitas” (excelentes e originais exemplos derivados da circunstância europeia
na América, em mestiçagem com os restos das culturas locais), desde aqui, a
burguesia intelectualizada dominante assumia a importação dos modelos externos
como símbolos de progresso e desenvolvimento social, econômico e cultural. A
ideologia de “imitar o que dá certo” marcou o desenvolvimento do continente
desde finais do Século XIX, consciência que perdura até nossos dias.
A
condição periférica é ideológica. Assume uma posição de relacionamento com um centro
que orienta teorias, métodos e processos de evolução. Atua no contexto próprio com
tendências a adotar ou adaptar modelos e soluções de referências comprovadas
sem maiores questionamentos.
Podemos
considerar, como uma variante de periferia, a condição de provincianismo e
arriscar que, diferente da primeira, esta se caracteriza pela ausência de
ideologias. A atitude provinciana assume uma condição de reflexo acrítico, uma
postura entre alegre e descompromissada que assume como próprias circunstâncias
alheias.
No
contexto periférico e provinciano, os exemplos fazem parte da cultura e do
cotidiano de tal modo que superam qualquer atitude crítica e reflexiva. Uma
sociedade que proclama sua cidade de “Veneza
brasileira” demonstra a condição de provincianismo sem limites, assim como
outras que adotam determinadas imagens como modelo de desenvolvimento (as de
Dubai são hoje as mais cotizadas). Refletem uma ansiedade de desapego da
realidade na procura de sonhos de realização e progresso. O orgulho provinciano
se manifesta em pavimentos de altura dos edifícios, em páginas de coluna
social, em novos shoppings centers e no mais novo objeto de desejo: a ponte
estaiada. As imagens e nomes tomados de contextos “centrais” permitem fugas
para situações supostamente melhores ou provedoras de status social, que são habilmente
manipuladas pela mídia. A profusão de termos estrangeiros (ingleses para os
aspetos comerciais, franceses para os relacionados com moradia ou cultura)
perdura condições de subordinação cultural. O sonho de morar em um “chateau”, “ville”, “maison” “residence” ou
“boulevard” cativa as mentes
provincianas e estimula a imaginação dos marqueteiros imobiliários.
A
consciência periférica é uma questão ideológica, assim como o antídoto para superá-la.
Estimular a idéia de centro e a valorização dos processos culturais próprios
(incluindo aqueles de adoções de modelos “centrais”) são instrumentos válidos
para superar a dependência. Contrapor, aos sistemas de adoção, outros de adaptação
ou de recriação por meio de elementos próprios ou alheios, integrações entre ordens
universais e locais, podem ser métodos válidos para a construção de uma
identidade cultural diferenciada a partir das circunstâncias próprias. A
história tem demonstrado a validade desses caminhos. Os processos de mestiçagem
da arquitetura colonial com a indígena, assim como a força da modernidade
carioca e pernambucana, do brutalismo paulista, ou de determinadas resistências
regionais, dentre outros, marcam caminhos válidos para definir a identidade
cultural brasileira.
O
estímulo de atitudes críticas, que valorizam o “pensar” antes que o “fazer”, torna-se
imprescindível na hora de formalizar, avaliar e decidir intervenções de
arquitetura e urbanismo no espaço social. Conceber a arquitetura como produção
cultural, e não como transação comercial, é um caminho para a valorização
profissional e a atuação do arquiteto como agente de cultura, e não como
profissional manipulado pelos interesses do mercado. Assumir essa consciência
significará, dentre outras coisas, a superação da condição periférica e
provinciana e a construção de uma identidade comprometida com os valores da
cultura local.
ROBERTO GHIONE é
arquiteto da VPRG Arquitetura, formado pela Universidad Nacional de Córdoba,
Argentina, especializado em Historia e Crítica da Arquitetura, Preservação do
Patrimônio e Planejamento Urbano.